You are currently viewing Seu Nino, o resgatado

Seu Nino, o resgatado

Em mais um post da série “Histórias Reais”, o Dr. Otavio Martucci revela a impressionante história do resgate de Seu Nino, um engenheiro que havia abandonado a sua família há mais de vinte anos.

Sr. Antonino, 70 anos, engenheiro

Sr. Antonino, ou simplesmente Seu Nino, foi um excelente engenheiro eletricista nas décadas de 70 e 80. Trabalhou numa grande empresa multinacional, foi um homem respeitado pela sua competência técnica, era bem casado e teve três lindos filhos. Eu saberia dessa história através de seus filhos: Kamila, Elena e Flávio.

Eles me contaram que a vida daquela família dera uma guinada súbita na década de 90. Seu Nino abandonou seu emprego, filhos, esposa, planos e projetos quando tinha aproximadamente 42 anos, deixando-os sem uma referência de pai. Ele tornou-se dependente do álcool e cigarro, e não mandou mais notícias por mais de vinte anos! Literalmente, perdeu-se por aí e foi morar no interior da Bahia.

Quando Seu Nino mudou-se para perto de Campinas, aos seus 66 anos, ele aceitou uma reaproximação com os filhos, porém sob muitas condições. Ele não aceitaria interferências em sua vida pessoal e manteria uma relação com certo distanciamento, e frieza. Embora muito inteligente, Seu Nino não era homem muito polido. Palavrões e grosserias saíam com certa facilidade pela sua boca, muito malcuidada, diga-se de passagem.

Cerca de quatro anos se passaram de um convívio morno entre Seu Nino e seus três filhos. Até que, num certo dia, Elena, a filha do meio, preocupou-se com a falta de notícias do pai por mais de trinta dias. Ele não atendia ao telefone celular e não respondia mais às mensagens enviadas. Elena partiu atrás do pai, com a convicção de que algo de grave estaria acontecendo e temia, inclusive, pela possibilidade de encontrá-lo sem vida – e por muito pouco isso não aconteceu!

Elena e seu marido contaram que ao encontrarem a casa de Seu Nino quase toda fechada, com apenas uma pequena brecha na janela da sala, temeram pelo o que viriam ao abrirem totalmente aquela janela. Eles se depararam com uma cena apavorante: Seu Nino estava quase sem vida, sonolento, caquético e sujo, sentado numa poltrona com urina, regurgitando pela boca uma secreção sanguinolenta. Ele cheirava mal, estava semimorto… em condições sub-humanas. Levado ao hospital, Seu Nino fez uma endoscopia e fora diagnosticado com câncer obstrutivo no esôfago.

Kamila foi acionada para ajudar no auxílio do transporte do seu pai até Campinas, enquanto Flávio interrompia uma viagem de negócios no exterior para, possivelmente, acompanhar os últimos dias de vida do Seu Nino.

Foi assim que conheci aquele homem, mais morto do que vivo, e que necessitava de internação emergencial para cuidados de saúde. Durante a sua estadia no hospital, ainda tivemos a ingrata surpresa de diagnosticar um outro tumor no pulmão do Seu Nino. Eram, portanto, dois tumores primários: um no esôfago e outro no pulmão, ambos relacionados ao hábito de fumar. Com algumas medidas clínicas, hidratação, analgesia e gastrostomia, para poder se alimentar, Seu Nino tornou-se mais vivo do que morto e, em poucos dias, começou a nos surpreender!

Passei a conviver com um homem inteligente, de humor refinado, mas pouco afetuoso. E acabamos criando um vínculo impressionante. Aquele Seu Nino, que abandonara sua família há duas décadas, mostrou-se uma pessoa disposta a ser cuidada. “Peço limites e dignidade. Nada mais, entendido?”, me avisava, na frente dos filhos, de forma reta, clara e objetiva, como um bom engenheiro.

Passei a gostar daquele homem que, pelo seu passado, teria me dado muito mais motivos para repudiá-lo. Jamais recusaria tratá-lo, isso nem passou pela minha cabeça. Mas, o que me impressionou, foi o jeito respeitoso que passamos a nos tratar.

Quando teve condições, Seu Nino recebeu radioterapia e quimioterapia. Durante o seu tratamento, ele ficou dentro de uma instituição de longa permanência, numa daquelas casas de repouso. Como parecia de costume, ele surpreendeu a todos! Teve uma resposta completa do tumor do esôfago e uma resposta parcial no tumor do pulmão. Quando a quimioterapia começou a atrapalhar sua sensibilidade e a força das mãos, Seu Nino foi franco: “Chega! Agora é hora de pararmos com essa quimioterapia”.

E ele tinha razão. Depois de seis meses de tratamento, ele não precisaria manter aquele tratamento. O intuito paliativo já tinha sido alcançado, e Seu Nino pediu para que a gastrostomia fosse retirada. Pediu, também, para fazer uma prótese dentária, pois ele gostaria de voltar a se alimentar pela boca. E implorou para voltar a viver fora de uma casa de repouso. Seus pedidos foram aceitos, ainda que aquela última solicitação tivesse gerado atritos entre ele e os filhos, que temiam como passaria a ser a vida de Seu Nino fora daquela instituição.

Seu Nino havia recuperado quase nove quilos desde o dia que o conheci; seus dentes postiços ficaram perfeitos; seu apartamento novo foi escolhido a dedo, para que recebesse todo o conforto que não tivera nos seus últimos vinte e poucos anos.

Passei a visitar Seu Nino em sua casa, um apartamento pequeno, porém agradável e bem localizado. Conversávamos da sua recuperação, dos momentos difíceis que havíamos superado e até de seus segredos do passado. Assistimos alguns jogos da Copa do Mundo de Futebol juntos. Conversávamos até sobre a espiritualidade! Cheguei a pensar que aquele homem, portador de duas graves doenças oncológicas, poderia nos surpreender e viver por muito tempo ainda.

Infelizmente, eu estaria errado! A doença pulmonar do Seu Nino voltou a progredir e ele desenvolveu metástases cerebrais, cerca de seis meses depois de ter encerrado sua quimioterapia. Ele voltou a se tornar dependente, mas não aceitaria, jamais, sair daquele belo apartamento, em que ficou instalado quando voltara a ter uma vida com qualidade.

Ele fazia questão de me lembrar: “Dignidade, e mais nada!”. Propus a ele uma nova etapa do tratamento e Seu Nino aceitou realizar a radioterapia do cérebro, embora tivesse deixado claro que se não houvesse sinais de resposta, não aceitaria novas intervenções. “Não quero tratamentos fúteis. Por favor, confio no seu discernimento”, falava para mim com um olhar fixo e penetrante. 

E o tratamento da doença cerebral, infelizmente, não surtiu efeito algum… Seu Nino começara a perder tudo aquilo que tinha ganho. Já não usava a prótese dentária, deixou de tomar banhos, emagreceu, e voltou a fumar e a beber. Eu sentia que aquele período difícil, que sua filha Elena presenciara ao abrir a janela da casa de Seu Nino, estava de volta. Aproximadamente um ano havia se passado desde o dia em que Seu Nino fora resgatado.

“O saber a gente aprende com os mestres e com os livros. A sabedoria se aprende com a vida e com os humildes” (Cora Coralina)

Em um de nossos últimos contatos, enquanto Seu Nino ainda mantinha um bom nível de consciência, dentro do seu belo apartamento, ele me disse emocionado: “Passei o melhor ano da minha vida aqui!”. Ainda, diante de tanta dificuldade, foi capaz de fazer uma autocrítica, esta jamais revelada aos filhos. E como gostaria que ele tivesse dito aos seus três filhos o que ouvi dele: “Eu não mereço os filhos que eu tenho! Eu não mereço todo o carinho que recebi nesse ano. Estou indo embora, mas vou tranquilo sabendo que deixo bons frutos por aqui”.

Seu Nino, de fato, recebeu amor em demasia dos seus filhos, depois de tê-los abandonados quando crianças e ficar mais de duas décadas sem mandar notícias. E foi tratado por profissionais extremamente comprometidos, humanos, sensíveis e respeitosos com suas vontades.

Meu convívio com ele, por cerca de um ano, foi intenso, e fez com que eu pegasse gosto pelo atendimento domiciliar e passasse a falar mais abertamente com os pacientes sobre nossa finitude como seres humanos.

Seu Nino faleceu depois de uma semana sob sedação, para conter suas convulsões que não cessavam.

As últimas palavras que ouvi dele, com muita dificuldade, ficarão marcadas na minha memória: “Otavio, gosto de você”, e me agradeceu por ter respeitado todas as suas vontades e participado da escolha de todos os outros profissionais que cuidaram dele: “Obrigado! No final da minha vida tive dignidade e fui cercado por um monte de gente do bem…”.

Eu que deveria ter agradecido o Seu Nino. Aprendi com quem jamais pensei que pudesse me ensinar algo na vida.

Deixe um comentário