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Contos Reais – Jean Pierre, o Padre

Dr. Otavio Martucci, Médico Oncologista, nos traz nesta série de posts “Histórias Reais”, narrativas marcantes vividas em sua trajetória clínica. E começamos com a incrível história de superação do padre Jean (nome fictício) na sua caminhada de Santiago de Compostela.

Amigos,

Muitos de vocês saberão, agora, que sempre gostei de escrever.

Tive até o sonho de ser jornalista, e cheguei a prestar Vestibular para Jornalismo quando encerrei o segundo grau. E não passei!

Depois de um tempo maior para reflexão, notei que eu gostaria de exercer uma profissão da área de ciências, para poder cuidar de gente. Havia uma influência natural, sem qualquer tipo de pressão. Meu pai era médico, neurocirurgião habilidoso, que criava um vínculo impressionante com seus pacientes. Ele costumava dizer: “quando um paciente confia totalmente em você, ele liga até para perguntar se pode tomar uma cerveja.”. Pura verdade!

O tempo passou… e eu passei no Vestibular para Medicina, presenciei a minha mãe vencer um câncer de pulmão, casei-me com uma jornalista, tornei-me oncologista e construí uma história de comprometimento com a minha profissão. Mas faltava a oportunidade de transmitir em palavras as emoções que a minha especialidade já me proporcionou.

Agora, tenho a chance de levá-los a um mundo absolutamente real e fascinante: o mundo da relação médico-paciente.

Eu aprendo, verdadeiramente, com todos os casos que tenho a honra de conduzir. Costumo dizer que as pessoas que mais me ensinaram algo de valor foram justamente aquelas que passavam pelos momentos mais difíceis de suas vidas. E ouvi, por anos, da minha esposa, que eu deveria escrever as “lindas histórias de amor” que vivo com os meus pacientes.

Aceitei o desafio! E começarei por aqui.

Não existem histórias tristes, apenas o final talvez não seja como gostaríamos. São batalhas, com vitórias ou derrotas, diante de situações que nos farão refletir sobre os valores da vida e os desafios do destino. Todos os casos são reais, com raríssimas alterações de conteúdo, justamente para fazê-los sentir o que um médico oncologista presencia na sua jornada. Apenas os nomes verdadeiros serão trocados por nomes fictícios, para a preservação da identidade de todos os envolvidos.

Espero que vocês também aceitem o desafio de entrar nessa experiência.

Otávio Martucci

Jean Pierre, o Padre

Jean Pierre, 55 anos

A primeira consulta com o padre Jean já foi marcante. Sem atraso, coisa rara, pedi para que a recepcionista me trouxesse o caso novo daquele dia. Ela me disse: ”Doutor, ele se chama Jean Pierre, é um padre, e está sozinho”.

Preparei o consultório para a sua chegada, que demorou um pouco mais que o habitual porque o paciente caminhava com muita dificuldade. Ele estava com falta de ar! Ao sentar-se, perguntei se ele se sentiria melhor com um pouco de oxigênio. Sem rodeios, ele me pediu ajuda: “Estou em suas mãos, faça o que o doutor puder para me ajudar”.

Enquanto aguardávamos o auxílio da enfermeira para colocarmos um cateter nasal de oxigênio, surpreendi-me com algumas coisas. Jean veio desacompanhado e não tinha o estereótipo de padre. Não se parecia em nada com aquele protótipo sacerdotal que conhecemos. Ele era um homem alto, grisalho, olhos azuis bem claros, e de físico atlético. Disse a mim que era fã de esportes, e praticava canoagem.

Passados alguns minutos, já com oxigênio, Jean começou a contar seus sintomas. De forma rápida, ele perdeu peso, tinha tosse constantemente e falta de ar ao realizar esforços. Pela piora clínica, foi orientado a abandonar uma missão jesuíta que fazia na Amazônia. Trazia para mim uma tomografia de tórax, uma broncoscopia e uma biópsia pulmonar diagnosticando um câncer de pulmão avançado. Mais uma surpresa, Jean jamais fora fumante!

Rapidamente, criamos uma empatia e notei que transmiti confiança ao padre Jean quando disse que iniciaríamos o seu tratamento rapidamente, pois seu quadro não permitiria adiamento. “Começamos bem doutor, sem atrasos e com oxigênio”.

Dois dias depois, Jean retornou ao consultório, acompanhado de um cuidador, senhor bem magro, humilde e tímido, chamado Marco Antônio. Jean trazia o seu torpedo alugado de oxigênio e os exames de sangue para iniciar a quimioterapia.

O primeiro dia da quimioterapia é marcado para muitos pacientes, pelo medo dos efeitos colaterais e pelo estigma do tratamento tóxico. Mas, para Jean, isso era insignificante. Chamou-me a atenção a primeira solicitação dele: “Doutor, gostaria de pedir toda a sinceridade quanto à gravidade do caso, pois não preciso ser enganado. Sou um homem de fé, e Deus estará ao meu lado… Por favor, não me esconda nada!”.

Com profissionalismo, disse ao padre que sua doença era gravíssima e que não existia a possibilidade de cura, mas de alívio e controle daqueles sintomas angustiantes que limitavam sua qualidade de vida. Auxiliado por Marco Antônio, com torpedo de oxigênio, cateter nasal e dificuldades para se sentar na poltrona para iniciar o seu tratamento, Jean solicita de forma franca: “Quando o doutor perceber que estarei nos meus últimos dias de vida, por favor, precisarei saber. Tenho um desejo a realizar no momento que antecede a minha morte”.

Iniciamos a quimioterapia e, em pouco tempo, Jean começou a melhorar clinicamente. Três semanas depois, ele apareceu para o seu segundo ciclo de quimioterapia com ganho de peso. “Não preciso mais do oxigênio, doutor! Não preciso trazer o torpedo! ”, comemorou o padre.

Após seis ciclos de quimioterapia, Jean era outro homem. Estava mais forte, alimentava-se bem e já praticava um pouco de canoagem. Uma verdadeira vitória! Comemoramos e decidimos por interromper o tratamento após a tomografia do tórax revelar que a doença havia praticamente desaparecido de seus pulmões.

Em momento algum Jean pensou estar curado. Muito menos eu, embora alimentasse a possibilidade de estar diante de um caso raro, tínhamos tido aquela primeira conversa sobre a impossibilidade da cura.

E ele soube aproveitar os momentos que esteve bem. Voltou para a Amazônia, reviu amigos e ajudou em outras missões.

Jean ficou quase um ano sem necessidade de quimioterapia, mais uma surpresa em se tratando de um caso avançado de câncer de pulmão.

Até quando, em uma consulta de rotina, ele me trouxe novos exames revelando a recidiva da doença e alertou-me: “Lembre-se de que temos um acordo?”.

Como Jean tinha ido muito bem com a primeira linha de quimioterapia, eu estava confiante de que ele voltaria a responder ao tratamento, e com muita convicção lhe respondi: “Não é o momento ainda…”.

Novamente, Jean respondeu ao retorno da quimioterapia, porém essa etapa foi mais longa. Ele necessitou de doze ciclos desse novo tratamento até me pedir autorização para fazer uma viagem dos seus sonhos: “Preciso fazer o caminho de Santiago de Compostela! Posso?”

Eu não estava seguro de que aquele seria o momento para uma viagem destas. Ele percebeu e pediu para que eu não me sentisse culpado se algo acontecesse com ele. Pedi alguns dias para pensar.

Poucos dias depois, em um de seus retornos, ele se queixava dos sintomas do tratamento, e não mais da doença. Foi nesse dia que tomei a decisão: “Hora de parar a químio, pois você precisa de férias, Jean!”. Ele encheu os olhos de lágrimas, abraçou-me fortemente e avisou que iria a Santiago de Compostela. Sinceramente, eu temi pela decisão.

Durante a sua viagem, eu recebia, quase que diariamente, e-mails com as notícias de sua jornada. “Hoje foi um dia bom, andei mais de 15 quilômetros“, dizia um dos e-mails. Mas também recebia notícias preocupantes: “Senti dor no peito, e tive febre”. Eu estava temeroso se deveria ter autorizado sua viagem. Quando Jean encerrou o trajeto do caminho de Santiago, recebi seu último e-mail: “Deus me acompanhou até o final! Agora, seu paciente está voltando ao Brasil e acho que vou precisar de mais quimioterapia, doutor”.

Ao retornar, Jean realmente tinha piorado. Lembrou-me aquele paciente do primeiro contato que tivemos. Um homem enfraquecido, sem ar para respirar.

Ele era um homem inteligente e sabia que depois de quase dois anos da nossa primeira conversa, as possibilidades de melhora eram pequenas. Durante o nosso convívio no consultório, tivemos conversas francas sobre a terminalidade. Jean, inclusive, pediu, mais de uma vez, e sempre na presença de Marco Antônio, para que eu não propusesse a ele tratamentos fúteis. Ele admitia ter verdadeiro pavor de sentir falta de ar! Com veemência me pedia, quase que implorando, que não gostaria de ter seus últimos dias de vida dentro de uma unidade de terapia intensiva, vivendo às custas de aparelhos.

Foi aí que, juntos, tomamos uma importante decisão. Olhando firmemente para os seus olhos azuis, eu implorei: “Jean, temos uma terceira linha de tratamento com um medicamento oral. Provavelmente essa é a nossa última arma contra a doença, vamos tentar?”. Apenas com a cabeça, ele fez sinal afirmativo.

Dessa vez, o tratamento não surtiu efeito algum. Em apenas dois meses, Jean dependia do oxigênio em 100% do tempo. Eu não poderia mais mantê-lo naquelas condições, pois ele necessitava de cuidados para alimentar-se, tomar banho e para as necessidades essenciais. A doença já ocupava, novamente, seus dois pulmões, ele já não tinha a menor qualidade de vida. Embora buscássemos manter Jean dentro do seu ambiente, o máximo possível, estava se tornando inviável para todos nós convivermos com tamanho desconforto.

“Sou um homem de fé, e Deus estará ao meu lado… Por favor, não me esconda nada!”

Aquele que seria o nosso último encontro no consultório, foi marcado por duas difíceis decisões: comunicá-lo da irreversibilidade do quadro e interná-lo. Afinal, tínhamos um acordo que já durava dois anos. Com um nó na garganta, eu disse: “Amigo, não temos muito tempo, seus pulmões não suportarão mais tanta angústia. Eu preciso internar você!”.

O padre chorou, mas agradeceu a minha sinceridade. Ele pediu a Marco Antônio que providenciasse uma ambulância para transportá-lo ao hospital, e que avisasse a sua família.

Ao terminar o consultório, meu dia ainda reservaria fortíssimas emoções. Fui ao hospital visitar Jean e, lá chegando, conheci os pais dele. Eram dois idosos, muito simpáticos e distintos, mas visivelmente consumidos pela situação toda. Também, estavam por lá, seu irmão e Marco Antônio, o único que eu conhecia pessoalmente. Do lado de fora do quarto, o irmão me disse: “Ele só está aguardando o senhor, doutor”.

Jean estava realmente muito mal. Não conseguia completar uma frase inteira. O ar já não ventilava seus pulmões. Era questão de pouco tempo, talvez horas. Eu não poderia permitir que ele partisse naquelas condições, participando de tanto sofrimento. Solicitei aos familiares que nos deixassem sozinhos, peguei em sua mão, arrumei sua posição no leito e com uma força tirada sabe-se lá de onde, lhe avisei: “Preciso sedar você”. Ele sabia que a sedação não encurtaria o seu tempo de vida, o que seria inadmissível, mas o pouparia da percepção do próprio sofrimento. Com muita dificuldade, o padre fez o seu último pedido, aquele dos nossos primeiros contatos, e que reservara para aquele momento: “Preciso rezar, agora, a minha última missa. Quero você, meus pais, meu irmão e meu amigo, ao meu lado”.

Todos nós sabíamos que aquele seria seu último ato de bravura em vida. Para uma pessoa naquelas condições, não seria fácil rezar uma missa. Mas Jean havia se preparado para aquele momento! Elevamos a cabeceira do leito, abaixamos a luminosidade do quarto e ficamos em semicírculo, de mãos dadas à sua frente. De forma rápida e sem rodeios, Jean improvisou e, em poucos minutos, fez a mais emocionante despedida que eu jamais pude imaginar. Ele agradeceu a Deus a vida que teve, agradeceu aos pais aos sonhos que realizou, agradeceu à medicina o tempo de vida que teve, e se despediu de todos, lembrando que ele partia, naquele momento, como Jesus partiu: acompanhado dos pais e das pessoas que mais amava!

Saí do hospital arrepiado de emoção, com os olhos quase vertendo lágrimas, não sem antes iniciar a sedação para aquele autêntico jesuíta. Naquela mesma noite, Jean Pierre se encontrou com o Criador.

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