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Mariano José, o Pastor Evangélico

“Histórias Reais” de hoje traz o Dr. Otavio Martucci, que nos brinda com mais um de seus relatos marcantes: o do Pr. Mariano José (nome fictício) – suas lutas, sua família, sua fé e sua aveludada voz.

Mariano José, 57 anos

Final de tarde, horário reservado para o caso novo daquele dia, que ainda não havia chegado. Logo, a recepcionista do consultório me avisa: “Doutor, as duas filhas já chegaram. O paciente está a caminho, com a esposa, vindo de ambulância!”. Um oncologista sabe muito bem do que estou falando… como é frio e tenso aquele momento que antecede a entrada de um caso novo. Aquela informação, vinda da recepção, aumentou a minha ansiedade.

Ao chegar da ambulância, enquanto eu me preparava para receber aquela família, vejo pela janela do meu consultório, um senhor calvo, de óculos, acima do peso, deitado na maca que saía da ambulância. Ele estava sorridente e brincava com a equipe de paramédicos, que o ajudava a entrar na clínica. A esposa, uma bonita senhora de idade, estava visivelmente preocupada. As filhas, duas belas jovens, não se importavam em esconder a aflição daquele encontro.

Quando o paciente chegou ao meu consultório, já acompanhado da família, agora em cadeira de rodas, com pijama de hospital, logo fez questão de mostrar seu jeito bonachão: “Não consegui escolher a minha melhor roupa, doutor. Desculpe-me por isso” – rimos, eu e ele apenas.

Ao iniciarmos os primeiros contatos, enquanto todos se ajustavam para aquela esperada consulta, eu já notava uma grande tumoração que ocupava quase que a metade do lado direito do pescoço do paciente. Mas, antes de começarmos propriamente a conversa clínica, o senhor Mariano José apresentou-se como pastor evangélico. Com uma voz maravilhosa, plácida e aveludada, típica de radialista, fez uma rápida prece que nortearia toda a minha percepção sobre o nosso vínculo: “Senhor, que a cabeça desse médico seja iluminada. Tire dele a responsabilidade de me curar, peço apenas a tua benção para ser tratado com dignidade. Eu aceitarei o destino por ti designado”. Eu via ali, naquele momento, um homem preparado para o que viesse pela frente. Definitivamente, o paciente era o mais sereno de nós naquele consultório.

Surpreendi-me ao saber que o motivo da internação, e da necessidade do transporte em ambulância, não tinha relação alguma com o diagnóstico oncológico. O pastor Mariano estava no segundo dia de recuperação de uma cirurgia abdominal por cálculos sintomáticos na vesícula biliar! Mas ele não desejava atrasar nosso encontro para outra data, por um motivo preocupante, e apontava para o seu pescoço: “Este caroço aqui está crescendo muito rapidamente, eu não posso perder tempo”, disse o pastor com a aprovação da esposa e das filhas, ainda visivelmente tensas.

“Senhor, que a cabeça desse médico seja iluminada. Tire dele a responsabilidade de me curar, peço apenas a tua benção para ser tratado com dignidade. Eu aceitarei o destino por ti designado”

Mariano tinha acabado de diagnosticar um tumor na região da laringe, e a lesão não era visível ao exame clínico sem a ajuda de endoscopia. O que se notava era uma massa dura e fixa na região cervical direita, que já tinha sido esclarecida por biópsia como o tipo mais comum de tumores na região da cabeça e pescoço, especialmente em pacientes fumantes e alcoólatras. Mas, o pastor jamais havia fumado ou consumido bebida alcoólica na vida. “Viu só, doutor? Tinha que ser comigo, que sempre critiquei os vícios desse mundo!”, dessa vez todos rimos.

Expliquei a eles um pouco a respeito da doença que acometia o pastor Mariano José, avisando, inclusive, que o caso seria discutido dentro de uma reunião multidisciplinar. Aproveitaríamos o tempo da sua recuperação, após a retirada da vesícula, para escolhermos o melhor tratamento para ele. Disse-lhes, também que, em caso de cirurgia, invariavelmente, ele perderia a voz. De prontidão, com certa repulsa da família presente, ele avisou-me: “Se tiver que ser assim, assim será”.

Duas semanas depois, quando o caso já tinha sido discutido dentro da equipe, e a recuperação da cirurgia abdominal já tinha sido cumprida, o pastor Mariano chegou para iniciarmos a quimioterapia. O tumor estava mais volumoso no pescoço, ele começara a sentir dor e certa rouquidão. Havíamos decidido, e comunicado previamente a ele, que seriam necessários dois ciclos de quimioterapia; a seguir, se tivéssemos uma resposta favorável, faríamos a segunda etapa do tratamento com quimioterapia e radioterapia concomitantemente, dentro de um protocolo de tratamento, na tentativa de preservar a laringe e, obrigatoriamente, a sua voz! E assim foi feito o tratamento do pastor.

A primeira fase da quimioterapia transcorreu muito bem, com poucos efeitos colaterais e uma impressionante resposta. O tumor cervical reduziu 75% o seu volume. A voz estava bonita, e aveludada novamente. Porém, durante a segunda fase do tratamento, Mariano teve muitos efeitos colaterais. Sua boca ficou seca e com feridas, sua voz praticamente sumiu, emagreceu quase 15 quilos, acabou aceitando ser alimentado por sonda enquanto insistíamos naquela estratégia. Mesmo diante de tantas adversidades, em momento algum, o pastor falou em desistir. Eu jamais ouvi alguma reclamação ou revolta por tudo aquilo que ele estava passando. A família dele também não mostrava desconfiança ou inquietação. Todos sabíamos que aquele difícil período passaria. E passou…

“Em caso de cirurgia, invariavelmente, ele perderia a voz”

Algumas semanas depois, os exames mostravam que não havia mais tumor no pescoço ou na laringe do paciente. Era cedo ainda para considerarmos que ele estivesse curado. Convencionou-se na Oncologia, e ainda com ressalvas, que a cura seja anunciada somente depois de cinco anos livres da doença. Mas não pairavam dúvidas em nossas mentes de que o tratamento realizado tinha surtido o efeito desejado. Era momento de iniciarmos o seguimento clínico, sem a necessidade de qualquer outro tratamento adicional.

Durante nossas consultas de acompanhamento, criamos uma amizade e uma confiança recíproca. Conversávamos de tudo, compartilhávamos projetos e sonhos. Eu admitia a ele que sempre me impressionei com sua fé. Mariano sempre me fazia lembrar daquele nosso primeiro contato, com o verdadeiro discurso de que ele estaria preparado para qualquer que fosse o seu destino.

Quase dois anos depois de encerrado o seu tratamento, Mariano trouxe-me a notícia de que sua filha mais velha estava grávida! Ele disse a mim, espontaneamente, e de um modo que eu jamais escutara de outra pessoa, que ele adoraria ouvir a palavra “vovô” da boca de uma criança. No mesmo dia perguntei o que mais ele gostaria de viver. “Simples, doutor: quero continuar pregando a palavra de Deus e quero viver perto da natureza”, e ficamos em silêncio.

O tempo passou, o pastor jamais deixou de ir em uma consulta. As notícias dos exames eram as melhores possíveis. A vida acontecia com toda a plenitude para ele e para a sua linda família.

Quatro anos se passaram desde o dia que conheci Mariano de pijama hospitalar. Hoje não existe qualquer suspeita de recidiva da doença. Mariano é avô de três netos, tem um canal evangélico no Youtube e mora com a esposa num lindo sítio perto de Campinas.

Caso me perguntem se o pastor Mariano José está curado, minha resposta, burocrática, seria: “provavelmente, sim!”. Agora, se perguntarem ao próprio pastor se ele se sente curado, a resposta dele certamente seria: “curado e realizado!”.

Amém.

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