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Joel, o bombeiro e atleta

Joel chegou à nossa equipe de Oncologia, a pedido de uma colega cirurgiã torácica, que procurava antecipar a data da consulta, pois se tratava de um caso muito grave. E realmente era gravíssimo!

O bombeiro Joel passou meses investigando um quadro de tosse e falta de ar, até ser submetido a uma broncoscopia diagnóstica que revelaria um câncer pulmonar avançado, bilateral. Joel tossia diuturnamente, e a tomografia do tórax impressionava pelo extenso acometimento da doença em ambos os pulmões.

Joel, homem magro, educado e de fala mansa, contava que quando começou a perder peso e sentir falta de ar para coisas simples do dia-a-dia, como tomar um banho, por exemplo, decidiu procurar auxílio médico dentro do Corpo de Bombeiros, onde trabalhava com muita dedicação há quase dezoito anos. Na realidade, Joel deixava transparecer muito mais do que dedicação, ele transbordava paixão pelo o que fazia. Eu saberia, mais tarde, que ele representava a sua corporação em competições de corridas de rua.

Da procura ao médico do trabalho ao diagnóstico por biópsia, até o dia do nosso contato, passaram-se poucas semanas. E Joel só piorava…

Na primeira consulta, Joel foi acompanhado da esposa, Soraia, para que, ao pé da letra, ajudasse-o a falar. A falta de ar era tamanha que ele deixava que a história fosse contada por Soraia, que notadamente mostrava-se apavorada com a velocidade da piora clínica. “Eu não o vejo mais sorrir, doutor! Não o vejo viver! Esse aqui não é o meu marido”, falou Soraia francamente.

Depois de avaliar os exames trazidos e examinar Joel, pedi a ele que tirasse suas dúvidas a respeito do quadro. Com dificuldade, mas com a própria voz, ele me fez três perguntas: “Vou poder trabalhar? O meu caso é grave? Quanto tempo eu tenho de vida?”.

Nessas horas, um oncologista sente um misto de apreensão e insegurança. Não poderia deixar Joel sem as respostas! Ao menos, as que eu sabia responder, não as deixei em vão: “Joel, você precisará se afastar do trabalho. O seu caso é considerado grave e precisamos iniciar o tratamento o quanto antes! ”. O bombeiro encheu os olhos de lágrimas e sua esposa não deixou de me cobrar a resposta da terceira e mais difícil pergunta de Joel: “E o tempo de vida, doutor?”. Fui direto na resposta, que não os agradou por parecer inútil: “Queridos, não tenho resposta para essa pergunta”. E fez-se um longo silêncio na sala.

Faço uma breve pausa na história de Joel, para falar da minha primeira experiência pessoal com o “tempo de vida”. Quando eu estava no 4º ano da faculdade de Medicina, minha mãe foi diagnosticada, coincidentemente com o caso do bombeiro, com câncer avançado no pulmão, mas ainda sem metástases. Em uma consulta com o oncologista dela, na qual eu estava presente, sem ela ter feito a pergunta sobre o tempo de vida que lhe restava, ela ouvira que sua doença não era passível de cirurgia, e que dificilmente viveria seis meses! Aquilo me marcou demais, de modo que, até hoje, dita o meu comportamento dentro do consultório. Eu jamais tinha ouvido, como estudante de Medicina, uma sentença com tamanha convicção. O fato é que minha mãe surpreendeu a todos… mudou de oncologista, teve uma resposta impressionante ao tratamento, conseguiu ser operada e viveu 16 anos sem sinais de recidiva do câncer pulmonar! Infelizmente, acabou falecendo depois de diagnosticar um segundo câncer no intestino, que não lhe deu a chance de viver mais do que seis dias!

Ele me fez três perguntas: “Vou poder trabalhar? O meu caso é grave? Quanto tempo eu tenho de vida?”

Voltando ao caso de Joel, decidimos por iniciar a quimioterapia convencional em pouco tempo. E o bombeiro teve uma discreta melhora. Já não tossia, mas a falta de ar o impedia de fazer outra coisa na vida além do trabalho, que o realizava: “Eu preciso correr, doutor! Amo corridas de rua e sinto falta de fazer isso”, disse Joel com semblante arrasado.

Enquanto Joel fazia seu tratamento injetável, a cada 21 dias, com a estabilização da doença por um breve período, decidimos encaminhar o material da sua biópsia pulmonar para uma análise externa à procura de uma rara mutação, que poderia trazer a Joel a possibilidade de ser tratado com um novo e promissor medicamento. Duas semanas depois, recebemos o laudo do exame com o resultado positivo para a tal mutação! Já eram corridos seis meses do tratamento inicial e a avaliação por tomografia revelava que a doença estava progredindo, motivo pelo qual haveria necessidade de mudança do seu protocolo.

Mas a saga de Joel era grande! O medicamento proposto ainda não tinha autorização para ser comercializado no Brasil, embora já existissem estudos clínicos consistentes de sua eficácia mundo afora. O convênio negou a medicação para Joel e ele teve que acionar a Justiça para adquirir a medicação, que traria a ele ganhos inimagináveis!

Guardo uma mensagem de Joel, enviada pelo telefone celular, quando ele ainda brigava pela aprovação da medicação: “Vamos apagar esse incêndio juntos!”.

Com três meses do novo tratamento, por via oral, Joel já mostrava relevante melhora. A falta de ar e a tosse tinham desaparecido e o mais surpreendente: ele já corria pelas ruas! Iniciou com corridas de 5 km, passou a correr 15 km e chegou rapidamente a completar uma meia-maratona com nove meses do novo tratamento. Com 14 meses do remédio, a doença não era mais visível pelos exames de imagem.

Quase dois anos depois de ter iniciado o seu tratamento oral, Joel foi convidado pela empresa farmacêutica, que passaria a comercializar a medicação no Brasil, para fazer um curto documentário do seu caso. Todo orgulhoso, Joel brincou comigo: “Quem diria, doutor? Virei garoto-propaganda!”.

Hoje, a medicação que fez Joel voltar a viver, está regularizada no país e já pode ajudar muitos outros pacientes portadores de câncer no pulmão com aquela rara mutação. E Joel ficou famoso em todo o Brasil, como o bombeiro que se tornou o herói de si mesmo.

Ele voltou a trabalhar na corporação e está treinando forte com a meta pessoal de completar uma maratona. E Soraia teve de volta o seu marido, como ela o conheceu: sorridente, trabalhando e correndo.

Só não me perguntem do tempo de vida que ainda tem Joel. Isso, ainda bem, eu não sei dizer!

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