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Barack Enam, o imigrante do Haiti

Barack era um daqueles pacientes carismáticos. Seu jeito espontâneo e brincalhão romperam todas as barreiras iniciais para estabelecermos, de imediato, uma boa relação médico-paciente. Aquele seu jeito bonachão não revelava a sua sofrida história de vida.

Barack Enam, 38 anos, haitiano.

Era dia de ambulatório no serviço público. Agenda lotada, como de costume. No final da tarde, o vigésimo oitavo agendamento daquele dia me chamava a atenção pelo nome estrangeiro e pela observação colocada após o seu nome: “18h – Barack Enam; cobrar documentos”.

Quando me dirigi à sala de espera para chamar o paciente, notei um jovem homem negro, forte, na primeira fileira das cadeiras de espera. Ao pestanejar a pronúncia do nome, esse mesmo homem se manifestou, em português: “Barack, sou eu!”. Começava aí o meu contato com aquele imigrante haitiano.

Barack chamava a atenção pelo seu porte físico, era negro, não miscigenado. Tinha um sorriso largo, os dentes bem cuidados e vestia uma camiseta branca e amarela com o brasão da seleção brasileira do lado esquerdo do peito. Estava acompanhado de um amigo, branco, de sotaque gaúcho, rapidamente identificado por Barack como o seu “irmão brasileiro”.

O amigo o acompanhava para ajudar na conversa, pois o imigrante estava no Brasil há pouco mais de um ano. Ainda assim, falava um bom português, com sotaque aquele “afrancesado” trazido do Haiti.

Barack era um daqueles pacientes carismáticos. Seu jeito espontâneo e brincalhão romperam todas as barreiras iniciais para estabelecermos, de imediato, uma boa relação médico-paciente. Aquele seu jeito bonachão não revelava a sofrida história de vida daquele homem.

Ele chegou ao Brasil de forma clandestina, entrou pela fronteira do Acre, após o terremoto que devastou o mais pobre país das Américas, o Haiti, nos primeiros dias de 2010. Mais de 300 mil pessoas morreram! Barack perdeu os pais, os quatro irmãos, os dois filhos pequenos e inúmeros amigos. Perdeu moradia, perdeu documentos, perdeu a sua história. Mas não perdeu a resiliência.

Sobraram, do seu núcleo familiar, apenas a esposa, Eloá, e uma filha, Sophia Xhosa, com oito anos de idade. Barack veio ao Brasil sozinho em busca de oportunidades para, um dia, trazer o restante da família sobrevivente. Com seu belo sorriso no rosto, disse, cheio de sotaque: “Um dia trago elas para cá!”.

Perguntei para ele, e ao seu amigo, qual documentação estaria pendente, pois aquela era uma observação anotada em seu prontuário. Como um troféu, Barack mostrou-me um papel do consulado haitiano que regularizava sua situação em terras brasileiras. Não bastasse a trágica história que eu acabava de conhecer, saberia, a seguir, que o motivo da consulta de Barack era um grave tumor no fígado.

Logo depois dele encerrar um tratamento dentário, sonho antigo seu, com o dinheiro que juntou trabalhando na construção civil em cidades vizinhas a Campinas, ele começou a perder peso rapidamente e a sentir fortes dores abdominais. A investigação se encerrou com uma triste notícia: era câncer do fígado, resultado de complicações da hepatite C, que ele nem conhecimento tinha do diagnóstico. Provavelmente, trazia aquela hepatite, crônica, de forma silenciosa e insidiosa, desde os tempos do Haiti.

Naquele momento, eu sentia uma necessidade imensa de ajudar aquele homem simpático, e não queria acreditar que tudo aquilo poderia estar acontecendo com um ser humano tão carismático. Por outro lado, sabia que a situação era extremamente grave, pois seu fígado estava totalmente tomado pela doença e ele começava a desenvolver ascite, ou barriga d’água, um agravante da situação.

O amigo, Júlio, realmente mostrou-se um verdadeiro irmão durante todo o nosso convívio. Foi ele quem levou toda a documentação médica à Secretaria da Saúde para adquirir o medicamento necessário para o tratamento de Barack.

Em pouco tempo, tivemos acesso ao medicamento específico, e Barack iniciou seu tratamento com uma enorme esperança – daquelas que não se pode duvidar, principalmente depois de tanta tragédia vivida. “Vou ficar bom, para receber minha esposa e minha filha aqui no Brasil”, dizia ele.

Naquele momento, eu sentia uma necessidade imensa de ajudar aquele homem simpático, e não queria acreditar que tudo aquilo poderia estar acontecendo com um ser humano tão carismático.

Apenas quatro meses depois de iniciado o tratamento, a situação clínica do haitiano piorou bastante. A doença já não respondia ao tratamento! O fígado dava sinais de falência iminente… nós perderíamos Barack, muito em breve.

Júlio, o “irmão brasileiro”, contou-me que ele e outros amigos conseguiram, com a ajuda de autoridades brasileiras e haitianas, condições para trazer Eloá e a Sophia Xhosa para visitá-lo. E isso seria uma surpresa dos brasileiros para ele! Avisei ao Júlio que aquilo teria que ser feito rapidamente. Ele entendeu o recado…

Cerca de quatro semanas depois, Júlio, emocionado, contou-me como foi o encontro: “Parecia cena de filme, doutor. Nunca vi algo parecido com aquilo”.

Segundo Júlio, Barack não desconfiava da surpresa. Eles prepararam uma festa, com churrasco entre os amigos, serventes de pedreiros, no início da noite de um sábado. Era época de Festa Junina, e eles arrumaram o local com bandeirinhas nas cores verde, amarela, azul e vermelha, cores das bandeiras do Brasil e do Haiti. Estavam todos com suas famílias, e a festa foi bancada pela empreiteira que o haitiano trabalhava. Naquele dia, Barack estava bem e sem dores. Na véspera, ele tinha feito uma punção para retirada de quatro litros de líquido da barriga, que o incomodava substancialmente. “Nem parecia que estava doente, doutor”, lembrava Júlio.

Perto das nove horas da noite, Júlio conta que os amigos começaram a bater palmas e um clarão se abriu no meio da multidão. Ventava bastante, as bandeirinhas tremulavam, e Barack foi chamado ao meio da roda de amigos. Ele se emocionou com a homenagem, chorou bastante e agradeceu a todos pela ajuda colossal que vinha recebendo dos amigos de trabalho durante o seu tratamento oncológico. Barack não fazia ideia do que aconteceria a seguir.

De repente, numa brecha aberta na roda, uma bela moça negra, com roupas coloridas, trazida direto do aeroporto, começou a chorar em voz alta. Junto dela, uma menina franzina, muito tímida, de bermuda e camiseta brancas – eram Eloá e Sophia! Segundo Júlio, Barack e Eloá se emocionaram, quase desmaiaram, e começaram a balbuciar um dialeto incompreensível, mas que não precisava de tradução…. Eles choravam de soluçar e se abraçavam, cantavam músicas do seu país, e giravam o corpo junto com a filha, que notadamente não reconhecia o pai, emagrecido.

A noite atravessou a madrugada, com tamanha emoção que não tivera um só a sair da festa sem ter derramado lágrimas junto com Barack, Eloá e Sophia.

Soube dessa linda parte da história pelas palavras de Júlio, homem forte também, daqueles que nos traz orgulho por representar a cordialidade e a hospitalidade dos brasileiros.

Barack não compareceu ao retorno… faleceu em sua casa, ao lado da esposa e da filha. Júlio fez questão de me levar um abraço das duas haitianas, que passariam a viver no Brasil. E ainda me levou um bombom, com uma carta singela de agradecimento da pequena Sophia Xhosa.

Anos depois, descobri, por acaso, que “xhosa” significava “doce”.

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