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Dona Conceição, a cozinheira

No post desta semana, o Dr. Otavio Martucci conta como foi a sua primeira experiência ao aceitar um convite da família de uma paciente, que preparou um inesquecível almoço para celebrar o sucesso do seu tratamento.

Dona Conceição, 60 anos, cozinheira

Conheci Dona Conceição na final do meu primeiro ano de residência médica, em 2004, dentro do ambulatório de Oncologia no Hospital das Clínicas em São Paulo. Era uma senhora negra, extrovertida e de sorriso brilhante, que, aos 60 anos, foi diagnosticada com câncer de mama. Ela era uma das cozinheiras do refeitório de uma universidade, na grande São Paulo.

Dona Conceição fora encaminhada pela equipe de Mastologia para fazer quimioterapia, antes de ser submetida a cirurgia. Dependendo da resposta que aquela paciente tivesse ao tratamento, a cirurgia poderia ser mais conservadora e evitaria que Dona Conceição passasse por uma cirurgia radical, chamada de mastectomia total com esvaziamento linfonodal axilar. Para ela, caso fosse realizada este procedimento, significaria algo além de uma mutilação, pois comprometeria o seu desempenho dentro do trabalho, que sustentava a sua família. “Não posso pensar em perder os movimentos desse braço, doutor! Como vou carregar minhas panelas?”, indagava aquela senhora cheia de dúvidas.

O medo de Dona Conceição, a exemplo de muitas outras mulheres que enfrentam o diagnóstico de um câncer de mama, era que seu braço ficasse inchado, duro e com movimentos limitados, depois de ser submetida a uma cirurgia que retiraria, além da mama, muitos nódulos linfáticos axilares – a isso damos o nome de linfedema, e até hoje amedronta médicos e pacientes.

Expliquei à paciente, acompanhada de dois dos seus cinco filhos, que haveria um risco de sequelas, inclusive o temido linfedema do braço. Mas que haveria a possibilidade de tornarmos a cirurgia dela com menos riscos, desde que ela respondesse à quimioterapia pré-operatória. Quando eu disse isso, ela se animou, e um dos filhos até me fez um convite de imediato: “Quando isso tudo terminar, vamos marcar um almoço para você conhecer os dons da Dona Conceição!”. Eu topei na hora, com certa hesitação.

Embora ainda no início da minha carreira, em especial pelo movimento do nosso ambulatório durante a residência médica, eu já tinha recebido vários convites para dividir com pacientes e seus familiares momentos de confraternização para celebramos nossas conquistas. Eu jamais tinha aceitado, por certo receio e até por conselho de alguns colegas, que diziam que eu não deveria me envolver tanto com os meus casos. Dona Conceição, mudaria essa percepção dentro da minha carreira!

O fato é que o tratamento ocorreu muito bem e a paciente teve uma excelente resposta depois de quase seis longos meses de quimioterapia. A doença, incialmente com mais de 8cm na mama direita, não era mais palpável ao exame clínico e nem mesmo vista aos exames de imagem. O primeiro passo para uma cirurgia conservadora acabara de ter sido atingido!

Senti uma emoção indescritível, e ali passei a ter a convicção de que eu poderia, e até deveria, envolver-me sim com os meus casos.

Quando Dona Conceição voltou da sua cirurgia realizada pela equipe da Mastologia, as notícias eram as melhores possíveis: ela não precisou fazer aquela temida cirurgia radical! Havia um resquício microscópico no setor da mama operada e a amostragem dos linfonodos axilares revelava que ela não precisaria fazer também o assustador esvaziamento axilar. Dona Conceição foi encaminhada para a radioterapia complementar e, a seguir, orientada a ser medicada por via oral por cinco anos.

Aquele filho, que havia me feito um convite meses antes, foi enfático: “O senhor já tem um compromisso para um almoço em breve com a nossa família. Pode se programar”. E ainda me perguntou: “Prefere churrasco ou feijoada? ”. Respondi com certo desconforto: “Sinceramente, churrasco”.

A história ainda nos levaria à uma situação inusitada! Dona Conceição ao término da radioterapia resolveu também convidar o meu colega radioterapeuta, Dr. Rogério, para me acompanhar naquele almoço festivo.

Dona Conceição já estava no seu sexto mês do tratamento oral, com os cabelos já crescidos e grisalhos, após tê-los perdido por completo por causa da quimioterapia, quando foi marcado o nosso almoço, num domingo em meados de 2005. Eu e Rogério fomos de metrô até à Estação Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. O Seu Divino, taxista e marido de Conceição, pegou-nos na saída das catracas. Eu já percebera que aquela seria uma experiência marcante. Ao entramos na rua da casa da Dona Conceição existiam ao menos umas cinquenta pessoas nos esperando! O meu colega, sem cerimônia alguma, ainda brincou: “Até parece que somos famosos!”.

Ao descermos do carro e sermos calorosamente recepcionados pela imensa família da Dona Conceição, senti uma emoção indescritível, e ali passei a ter a convicção de que eu poderia, e até deveria, envolver-me sim com os meus casos. Vi aquela mulher sorridente e com lágrimas nos olhos, mas aquilo não era novidade para mim. A novidade era estar conhecendo a Dona Conceição na sua essência, dentro da sua casa, ao lado dos seus filhos e netos.

Numa tarde ensolarada e agradável, quando chegamos ao grande e arrumado quintal da casa, eu e Rogério tivemos um acesso de risos! A mesma pergunta que o filho da Dona Conceição fizera para mim, ele havia feito para o meu amigo radioterapeuta, sem que nós soubéssemos. Mas, a resposta de Rogério tinha sido: “Feijoada!”. Para não causar problemas, a família da Dona

Conceição resolveu o assunto de uma maneira muito simples: fizeram churrasco e feijoada!

A tarde acabou depois das sete da noite, e seu Divino nos deixou na porta da Estação do metrô. No caminho de volta para casa, eu e meu amigo radioterapeuta tínhamos a certeza de que acabávamos de viver uma experiência que nos marcaria pelo resto de nossas vidas.

Depois que saí de São Paulo para vir trabalhar em Campinas, perdi o contato com Dona Conceição e sua família. Porém, mais recentemente, soube através do meu colega que aquela família resolveu empreender e, hoje, faz “marmitas gourmet”. Soube também que aquela paciente conta essa história aos seus clientes e que seu braço jamais inchou por linfedema.

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