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Marco Aurélio, um caso raro

Dr. Otavio Martucci está de volta e trás pra gente novamente suas histórias tomadas de emoção, verdades e enormes significados. Neste episódio veremos a história do Marcão, um torcedor da Lusa, com seus imensos desafios pessoais e sonhos realizados.

Era da responsabilidade do médico-residente do primeiro ano de Oncologia aguardar o final da infusão da quimioterapia do último paciente, para poder deixar o hospital com segurança. Essa era a recomendação que recebíamos ao iniciarmos a residência médica no Hospital das Clínicas em São Paulo.

Numa sexta-feira à tarde, enquanto eu verificava os hemogramas dos pacientes agendados para tratamento quimioterápico na segunda-feira, fui avisado pela enfermaria da sala de que  o último caso iria atrasar. “Doutor, estamos atrasados aqui. O paciente Marco Aurélio  teve uma reação alérgica, já revertida, mas iniciaremos agora a infusão da última bolsa de quimioterapia. Provavelmente encerraremos depois das 18 horas, ok?”.  

Aquele paciente não era acompanhado por mim, e sim pelo meu colega médico-residente do segundo ano de Oncologia. Fui ao prontuário do paciente e vi que se tratava de um jovem de 30 anos, recém operado de um sarcoma na coxa, que deveria realizar cinco ciclos de quimioterapia complementar. Aquele era, ainda, o primeiro ciclo do tratamento. Fiquei pensando o que estaria se passando na cabeça dele. Resolvi ir vê-lo na sala de químio.

Ao chegar, deparei-me com um jovem, visivelmente assustado com o que havia ocorrido minutos antes. Eu me apresentei como o médico residente responsável pelas intercorrências e que acompanharia o final da infusão da sua quimioterapia. “Fique aqui, doutor, vou me sentir mais seguro. Por favor!”.

Aquele pedido deixou-me sensibilizado, pois passou pela minha cabeça que atrasar um pouco para chegar em casa numa sexta-feira até não seria um problema para mim. Quem realmente tinha um problema era aquele moço… Tão jovem, fazendo quimioterapia, e cheio de incertezas…

Resolvi conversar com ele sobre a doença que o acometera. Perguntei dos sintomas iniciais do tumor, falamos dos efeitos da quimioterapia, sobre a queda dos cabelos e dos enjoos previstos. Ele já sabia de tudo, bem detalhado e explicado pelo meu veterano no ambulatório. A conversa fluía muito bem, enquanto a quimioterapia corria sem intercorrências.

De repente, ele me perguntou: “Do que mais o senhor gostaria de saber, doutor?”. Naquele momento, senti pela primeira vez a vontade de saber menos da doença e mais do paciente. E perguntei: “Qual time de futebol você torce?”. De prontidão, Marco Aurélio respondeu o que eu jamais imaginei que fosse ouvir. “Sou torcedor da Portuguesa de Desportos, doutor!”. Eu brinquei com ele, e logo o assunto virou piada. Chamei o técnico de enfermagem e a enfermeira da sala de quimio e os avisei: “Vocês estão diante de um caso raro… Temos aqui um torcedor da Lusa!”. Daí pra frente, o papo rolou sem preocupação com o horário, tampouco com alguma intercorrência da quimioterapia.

Naquele mesmo dia, descobri que Marco Aurélio era recém casado, tinha o sonho de ter filhos, morava na cidade de Embu, que seus pais eram portugueses, etc. Ou seja, eu passei a saber mais sobre ele do que da doença que o levou até à quimioterapia. E comecei a entender como era bom para todos nós darmos ao paciente, e não à doença, o protagonismo.

Aquele paciente tinha uma história de vida de muito sofrimento, e passava por problemas financeiros, inclusive. Por várias vezes, durante a conversa na sala de químio, eu segurei o choro ao saber de suas histórias.

A quimioterapia daquele raro torcedor da Portuguesa terminou depois das 18 horas, numa sexta-feira, véspera do jogo entre a Lusa e o meu São Paulo. Combinamos de nos falar na segunda-feira, dia que ele apareceria no ambulatório para iniciar uma medicação para manter sua imunidade em boas condições, como uma defesa para o organismo dele.

Na segunda-feira cedo, encontrei Marco Aurélio com a camiseta da Lusa, todo orgulhoso pela vitória do seu time sobre o Tricolor. O jogo havia sido disputado no Morumbi, e terminou 2 x 1 para a Portuguesa. Ele ainda brincou comigo se não seria o São Paulo que necessitaria das injeções para melhorar sua própria defesa.

Marcão, como passei a chamá-lo desde o dia do nosso papo na sala de químio, terminou seu tratamento, completando os cinco ciclos do tratamento no final de 2004.

No ano seguinte, eu assumiria o ambulatório do meu veterano, e Marcão passaria a ser acompanhado por mim. Durante este ano, em meio nossas consultas de rotina, meu paciente revelou temer não poder realizar o sonho de ser pai. Por causa da quimioterapia, ele e sua esposa, Vanessa, estavam com dificuldades de engravidar.

“Passei a saber mais sobre ele do que da doença que o levou até à quimioterapia. E comecei a entender como era bom para todos nós darmos ao paciente, e não à doença, o protagonismo”

Acompanhei o caso do Marcão até o início de 2006, quando terminou a minha formação como médico-residente de Oncologia. Naquela época, não tínhamos WhatsApp, e a maneira que encontrei para manter a minha conexão com ele foi passar o meu e-mail.

Conversávamos bastante por e-mails, sobre família, sonhos e futebol. Contei da minha vinda para Campinas, do nascimento das minhas filhas em 2006 e 2007. Nos anos seguintes, Marco Aurélio e Vanessa fizeram três tentativas de fertilização in vitro, porém sem sucesso.

Anos depois, no final de 2012, recebo de Marcão um e-mail com o título: “A torcida da Lusa vai aumentar!”. Fiquei muito emocionado ao ler sua mensagem, a qual dizia que Vanessa estava grávida, sem tratamento algum, e de gêmeos! Aquela notícia só não causou um maior impacto em mim, do que o e-mail que recebi meses depois, em março de 2013: “Nasceram, doutor!”

Fiquei impactado ao me dar conta de que além de curado, Marcão tinha realizado um sonho na sua vida: ele se tornara pai!

Marcão enviou foto da família na maternidade, mostrando os dois novos torcedores da Portuguesa de Desportos: João Otávio e Paulo Otávio!

Acreditem, chorei.

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