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Dona Antonietta, a italiana

No “Histórias Reais”, Dr. Otavio Martucci conta a admirável história de uma senhora italiana atendida na rede pública, que acabou se beneficiando da doação de um medicamento para o seu tratamento de câncer no pulmão.

Dona Antonietta, 70 anos, a italiana

Já no primeiro mês do meu trabalho em um grande hospital público de Campinas, cheguei à conclusão de que estaria diante de uma enriquecedora experiência ao atender todos os tipos de pessoas. Costumo dizer que os oito anos que frequentei o ambulatório daquele hospital, praticamente me credenciaram a afirmar que me formei em mais uma faculdade: a “A Faculdade da Vida Real”, como passei a chamar aquele local.

Lá dentro vivi inúmeras experiências, o mais verdadeiro contato com a realidade da saúde pública brasileira. E passei a admirar ainda mais os colegas e os profissionais que dedicam seus conhecimentos aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, admiráveis mesmo, foram as centenas, ou talvez milhares, de pacientes com os quais convivi.

Em setembro de 2009, conheci Dona Antonietta, uma típica italiana que havia diagnosticado um câncer no pulmão já com metástases ósseas, aos 70 anos de idade. Ela era uma daquelas pacientes que não suportavam longos períodos de espera, e quando eu atrasava no andamento do ambulatório, o que era rotineiro, não só pelas dificuldades que enfrentávamos em meio às obras de ampliação do serviço, Dona Antonietta invadia o corredor e ficava como uma sentinela em frente ao meu consultório, com cara de poucos amigos.

Curiosamente, até pela minha descendência italiana, aquilo não me intimidava, e até achava graça naquela situação, pois eu via em Dona Antonietta o estereótipo de algumas pessoas da minha família. Até provocá-la, eu costumava dizer: “Se a senhora ficar aqui plantada na porta da minha sala, eu passo outros pacientes na sua frente”. E ela, uma senhora italiana, natural da Sicília, saía pisando forte e esbravejando de volta até às cadeiras da sala de espera. Com seu português macarrônico, ela devolvia: “O senhor que me faça essa desfeita, eu saio falando mal de você por aí”.

Quando chegava a vez do seu atendimento, eu a chamava em alto e bom som: “Dona Antonieta, a mais brava dessa sala de espera, por favor, pode entrar!”. Aí levantava aquela italiana, e como de costume, devolvia na mesma moeda a provocação: “Até que enfim!”.

Aquela braveza toda da sala de espera ficava para fora da porta do consultório. Dona Antonietta, sempre sozinha, nem sentava para começar a falar. Muitas vezes, mal tínhamos tempo de verificar os exames trazidos, tamanha a sua vontade de conversar. Ela estava sempre perfumada e era dona de um abraço acolhedor. Suas consultas eram sempre divertidas, mesmo antes de entrar na minha sala de atendimento.

Porém, depois de três meses de tratamento com quimioterapia para o tratamento daquele câncer de pulmão, em uma consulta de rotina, vi Dona Antonietta sentada na sala de espera, cabisbaixa, e até sem expressar toda sua insatisfação pelo meu atraso. Naquele dia, ela trazia os exames tomográficos de controle, após um período dedicado ao tratamento. Trazia também, pela primeira vez, sua filha Giulia, uma moça jovem, bela, calma e de fala baixa.

O motivo de tamanha mudança naquele comportamento típico da minha paciente, era que ela havia lido os laudos dos seus exames. A sua doença havia progredido, depois de três meses de quimioterapia, que veio acompanhada de muitos efeitos colaterais.

Naquele dia, Dona Antonietta só olhava para o chão, nem nos meus olhos era capaz de olhar. Não queria demonstrar fraqueza, embora fosse natural que aquilo acontecesse diante dos resultados ruins, lidos dentro dos envelopes dos exames de controle.

Giulia me contou que sua mãe já não sentia vontade de continuar o tratamento oncológico que, obviamente, deveria ser alterado depois da progressão da doença. Enquanto Dona Antonietta recuperava-se dos efeitos colaterais daquela fracassada sequência de quimioterapia, encaminhamos o material de sua biópsia pulmonar à procura de uma determinada mutação, e que traria a possibilidade de oferecer um tratamento por via oral. Porém, o resultado chegou quatorze dias depois, e inconclusivo. Ou seja, diante daquela informação, eu não teria como solicitar, pelo SUS, aquele determinado remédio, que seria administrado por via oral.

Paralelamente ao andamento do resultado da pesquisa daquela mutação genética, Dona Antonietta já tinha tomado uma decisão: “Eu não faço mais quimioterapia injetável! Prefiro morrer!”, falou-me decididamente.

Fora do ambiente do SUS, num caso como desta senhora, dentro do cenário de uma segunda linha de tratamento, eu teria permissão para iniciar o medicamento oral sem a necessidade da confirmação daquela citada mutação. Assim, eu teria que falar sobre o assunto com a minha paciente e sua filha, e quando tivemos essa conversa, ambas se prontificaram a iniciar a medicação, adquirindo o remédio com uma receita minha. Elas arcariam com o custo daquela nova etapa do tratamento, porém não faziam ideia da vultuosa despesa que teriam… O tratamento, no longo prazo, ficaria insustentável do ponto de vista financeiro.

No consultório particular, eu vinha atendendo uma paciente oriental, senhora Toshiko, que acabara de adquirir a mesma medicação que havia proposto para Dona Antonietta. Surpreendentemente, o filho desta paciente, um executivo de uma empresa multinacional, adquiriu a compra de doze caixas da medicação durante uma viagem a trabalho para o exterior. Aquela quantidade de medicamento, garantiria praticamente um ano de tratamento para a minha paciente oriental. No entanto, infelizmente, no primeiro mês de tratamento da senhora Toshiko, a doença progrediu para o cérebro e levou a minha paciente ao óbito, antes mesmo dela acabar de tomar a primeira caixa daquele caríssimo medicamento.

Elas arcariam com o custo daquela nova etapa do tratamento, porém não faziam ideia da vultuosa despesa que teriam… No longo prazo, ficaria insustentável do ponto de vista financeiro.

Num ato de admirável compaixão, o filho da senhora Toshiko, fez uma carta de doação ao SUS das caixas restantes daquele remédio, os quais poderiam ajudar outros pacientes – o que, lamentavelmente, não tinha ocorrido com a sua mãe. Com aquele ato, o medicamento espantosamente ajudaria a minha querida paciente italiana, de uma forma inacreditável!

Dona Antonietta já estava emagrecida, acamada e com fortes dores ósseas em decorrência do avanço da doença pelo esqueleto. Ela quase não saía da cama e tinha dificuldades até para tomar um banho no chuveiro. Quando Giulia, um tanto descrente, pegou a medicação doada pelo filho da senhora Toshiko. Nós não saberíamos que a melhora seria tão rápida, e duradoura.

Em apenas trinta dias de uso da medicação, Dona Antonietta já estava de pé! Voltou a se alimentar bem, melhorou das dores ósseas e passou a acreditar que poderia voltar a ter vida com qualidade. Em sessenta dias, num dia de ambulatório cheio, ao abrir a porta do meu consultório para chamar o próximo paciente, dei de cara com Dona Antonietta. Lá estava ela, de volta, aquela paciente que eu havia conhecido: brava, reclamando do atraso e em pé no corredor de frente ao meu consultório. Ela não estava agendada naquele dia, apenas foi ao hospital para me abraçar e agradecer.

Dona Antonietta conseguiria acesso à continuidade da medicação, quase um ano depois, por via judicial. Até que aquilo se tornasse possível, judicialmente, ela consumiu quase toda a doação feita pelo filho da senhora Toshiko.

Com isto, essa querida senhora italiana viveu mais de três anos com muita qualidade, até falecer com metástases cerebrais. Mas, não fosse o trágico desfecho de uma descendente japonesa, minha paciente italiana não teria conhecido Beatrice, a sua neta, filha de Giulia.

A última caixa da medicação recebida judicialmente pela Dona Antonietta não chegou a ser aberta, e também foi doada por sua filha à uma campineira.

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