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Valdeir e a sua cachorrinha Pipoca

Dr Otavio Martucci conta a emocionante história de amor entre um ser humano de sólidos valores e sua inseparável cachorrinha, nos últimos anos de suas vidas. Convidamos vocês a conhecerem Valdeir e Pipoca (nomes fictícios) e suas lições de humildade e companheirismo.

Numa terça-feira cedo, dia de visita hospitalar, conheci o humilde senhor Valdeir. Homem simples, 62 anos de idade, trabalhador da indústria do petróleo, muito educado e de valores bem sólidos. Nosso primeiro contato foi muito rápido. Fomos apenas apresentados pelo ortopedista que tinha operado um tumor na coxa do Valdeir. Ele passaria em consulta comigo dias depois, mas chamou-me a atenção as poucas palavras que ouvi dele naquele encontro no hospital: “Doutor, preciso ir para casa. Conversaremos muito melhor no seu consultório. Agora preciso matar a saudade da minha cachorrinha Pipoca”. E assim foi feito…

Cerca de uma semana depois, Valdeir chegou ao consultório para a sua primeira consulta oncológica. Ele foi acompanhado de sua filha, Miriam, que herdava a mesma humildade e educação do pai. Na tentativa de descontrair e quebrar o clima naturalmente frio da primeira consulta, perguntei: “Onde está Pipoca?” e Miriam, antes mesmo de seu pai ameaçar uma resposta, avisou: “Foi difícil sair de casa, doutor. Eles não se desgrudam! Parecem pai e filha”.

Naquele dia, além de descobrir que Valdeir tinha operado um grande tumor na coxa e que necessitaria de quimioterapia e radioterapia, eu conheci um ser humano apaixonado por sua cachorrinha. Pipoca e Valdeir estavam juntos há quase treze anos. Para ele, Pipoca não era apenas um animal de estimação, era a companheira fiel nos momentos mais difíceis de sua vida. Ela chegou como presente de Natal, após o falecimento, por infarto, de Dona Madalena, a esposa dele.

Durante todo o tratamento oncológico, feito dentro da nossa clínica, Valdeir contava as histórias que tinha vivido com Pipoca. Era a diversão para enfermagem e para os outros pacientes em tratamento. Ele levava fotos daquela autêntica vira-lata que, sem dúvida alguma, era a maior alegria da vida daquele homem. Valdeir falava dela de forma peculiar e apaixonada e sofria ao imaginar uma possível separação, afinal Pipoca já estava bem idosa também.

Mantivemos nossas consultas de acompanhamento regularmente e tudo vinha bem, até eu receber uma tomografia do tórax de Valdeir, revelando metástases pulmonares. A doença tinha retornado, cerca de dois anos depois do término do seu tratamento, e afetava os seus pulmões – era preciso retornar à quimioterapia. Lá estaria ele, novamente, na sala de quimioterapia, que já havia sido local para as suas histórias e as histórias da Pipoca.

“Quando ele saiu de maca da ambulância, ela teve uma reação inacreditável… Começou a latir e a uivar! Meu pai não parava de chorar de tanta alegria”

Infelizmente, os exames de controle, depois de três meses do novo tratamento, não mostraram que a quimioterapia estava surtindo efeito. Valdeir começou a ter sintomas respiratórios, inclusive com necessidade de uso do oxigênio. Tínhamos poucas chances de reverter o quadro. Ainda buscamos um novo tratamento quimioterápico dentro do hospital. Seria aquela a última tentativa de reverter a história natural da grave doença que acometia aquele paciente.

No hospital, como esperado, a preocupação de Valdeir era: como ficaria Pipoca? Eu notava a angústia dele em saber como ela estaria sem a sua presença em casa.

Até que um dia, com muita dificuldade respiratória, ele me pediu para ver Pipoca. Eu não poderia autorizar a entrada de um animal no ambiente hospitalar, aquilo me incomodava também. Eu gostaria que acontecesse aquele encontro “pai e filha”, especialmente porque sabíamos que Valdeir não teria muito tempo de vida. Aquele encontro seria importante para ambos.

O enfermeiro, notando o meu desconforto em não saber como agir, perguntou: “Doutor, o que está te incomodando?”. Respondi, com sinceridade: “Não sei como fazer para trazer a cachorrinha Pipoca ao hospital, para que o senhor Valdeir possa vê-la”. Com uma presença de espírito invejável e com muita naturalidade, o enfermeiro mostrou-me o caminho a seguir: “Fácil, vamos dar alta para ele”!

Realmente não seria possível levar Pipoca até o hospital, mas faríamos o que fosse necessário para levar Valdeir para casa. Toda equipe multidisciplinar que acompanhava o caso, durante a internação, entrou decidida a resolver esse assunto em poucos dias. Também foi convocada uma equipe de atendimento domiciliar, com o consentimento da filha Miriam, para permitir a saída do Valdeir com segurança. E lá se foi nosso querido paciente para casa…

Miriam conta que preparou a casa do pai com muito carinho. Arrumou os espaços para que recebessem uma cama apropriada e o aparelho de oxigênio. Ao lado da cama alugada, tinha um cantinho reservado para Pipoca.

O mais emocionante, conforme relato emocionado de Miriam, com seus olhos transbordando de

lágrimas e o queixo trêmulo, foi o reencontro de Valdeir e Pipoca. “Quando ele saiu de maca da ambulância, ela teve uma reação inacreditável… Começou a latir e a uivar! Meu pai não parava de chorar de tanta alegria”. Todos ali pareciam ter sentido a mesma emoção. Assim, deixaram os dois a sós na frente da casa simples de Valdeir, para que aquele reencontro não fosse atrapalhado, pois aquele era um momento muito esperado por todos.

Naquela noite, acreditem, os dois dormiram juntos na mesma cama. O que seria inimaginável dentro de um ambiente hospitalar!

Três dias depois, quando Valdeir piorou pela falta de ar, precisaríamos decidir sobre a volta dele ao hospital. Porém, muito sincero, aquele homem de valores sólidos, expôs, de forma clara e objetiva, as suas vontades. “Deixem-me por aqui, por favor! Não faz sentido me tirar daqui! Não temos nada dentro do hospital que seja capaz de reverter a minha situação. Além disso, vocês irão me separar da única coisa que ainda me faz bem nessa vida, que é essa vira-lata aqui”, disse um homem enfraquecido, com muita dificuldade, apontando para sua companheira.

Então, tomamos a decisão de manter Valdeir em casa, com o melhor suporte possível, e ao lado de Pipoca. Foi montado um verdadeiro aparato hospitalar na casa simples daquele bravo homem, que estava nos últimos dias de sua vida. Não existiam outras possibilidades de tratamento frente ao câncer que já acometia maciçamente os seus dois pulmões.

Quatro dias depois da decisão de mantê-lo em casa, Valdeir precisou ser sedado para alívio do seu sofrimento respiratório, que já havia se tornado intolerável. Os últimos dias de vida daquele humilde homem foram sem sofrimentos, e junto da cachorrinha Pipoca, até o seu último suspiro.

Soube através de Miriam que Pipoca ficou os três últimos dias da vida de Valdeir sem se alimentar, porém o tempo todo ao lado dele. Até dar, também, o seu último suspiro, no dia seguinte da partida do seu “pai”.

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